quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Freud está de Volta Parte III




Desejos Ocultos
O que chama a atenção nessas idéias falsas é a presença de desejo, uma impressão que Fotopoulou confirmou com a análise quantitativa de 155 das confabulações do paciente. As falsas crenças do paciente não eram aleatórias - eram geradas pelo "princípio de prazer" que, segundo Freud, é central para o inconsciente. O homem simplesmente reconstruía a realidade como queria que fosse. Observações semelhantes foram relatadas por outros pesquisadores, como Martin Conway, de Durham, e Oliver Turnbull, da Universidade de Gales. Eles são neurocientistas cognitivos, não psicanalistas, mas interpretam suas descobertas em termos freudianos, alegando, basicamente, que os danos à região límbica frontal que produzem as confabulações prejudicam os mecanismos de controle cognitivo, que são a base da monitoração normal da realidade, e libertam da inibição as influências implícitas do desejo na percepção, na memória e no julgamento.
Freud argumentava que o princípio do prazer, na verdade, exprimia impulsos primitivos, animais. Para seus contemporâneos vitorianos, a idéia de que o comportamento humano fosse no fundo governado por compulsões sem nenhum propósito mais nobre que a auto-realização carnal era simplesmente escandalosa. O escândalo se atenuou nas décadas seguintes, mas o conceito freudiano do homem como animal foi mantido em segundo plano pelos cientistas cognitivos. Agora ele está de volta. Neurocientistas como Donald W. Pfaff, da Universidade Rockefeller, e Jaak Panksepp, da Universidade Estadual de Bowling Green, acreditam hoje que os mecanismos instintivos que regem a motivação humana são ainda mais primitivos do que imaginava Freud. Nossos sistemas básicos de controle emocional são iguais aos de nossos parentes primatas e aos de todos os mamíferos. No nível profundo da organização mental que Freud chamou de id, a anatomia e a química funcionais de nosso cérebro não são muito diferentes daquelas dos animais que vivem nos currais ou dos bichos de estimação.

No entanto, os neurocientistas modernos não aceitam a classificação freudiana da vida instintiva humana como simples dicotomia entre sexualidade e agressão. Através do estudo de lesões e do efeito de drogas, além da estimulação artificial do cérebro, eles identificaram pelo menos quatro circuitos instintivos básicos em mamíferos, sendo que alguns deles se sobrepõem. São o sistema de "recompensa" ou de "busca" (que inclui a procura de prazer); o sistema da "raiva" (que comanda a agressão raivosa, mas não a predatória); o sistema de "medo-ansiedade"; e o do "pânico" (que inclui instintos como os que comandam os impulsos maternais ou as relações sociais). Também se investiga a existência de outras forças instintivas, como um sistema de "brincadeira". Todos esses sistemas cerebrais são regulados por neurotransmissores, substâncias químicas que carregam mensagens entre os neurônios do cérebro.

O sistema de busca, controlado pelo neurotransmissor dopamina, apresenta uma incrível semelhança com a "libido" freudiana. De acordo com Freud, os impulsos sexuais ou libidinosos são um sistema de busca de prazer que move a maioria de nossas interações com o mundo. Pesquisas recentes mostram que seu equivalente neural está diretamente envolvido em quase todas as formas de compulsão e vício. É interessante notar que as primeiras experiências de Freud com a cocaína - na maioria delas ele aplicava a droga em si mesmo - o convenceram de que a libido devia ter algum fundamento neuroquímico. 


Farmácia Freudiana
Ao contrário de seus sucessores, Freud não via motivo para o antagonismo entre psicanálise e psicofarmacologia. Ele antevia com entusiasmo o dia em que a "energia do id" seria diretamente controlada por "determinadas substâncias químicas". Os tratamentos que combinam psicoterapia com medicamentos que agem no cérebro são considerados hoje a melhor abordagem para muitos transtornos. E tecnologias de imagem mostram que a psicoterapia atua no cérebro de modo semelhante aos medicamentos.
As idéias de Freud também estão ressurgindo na ciência que trata do sono e dos sonhos. Sua teoria dos sonhos - a de que são um modo de vislumbrar os desejos inconscientes - foi desacreditada com a descoberta da correlação estreita entre o movimento rápido dos olhos (REM) e o ato de sonhar, nos anos 1950. A visão freudiana perdeu praticamente toda a credibilidade nos anos 1970, quando pesquisadores mostraram que o ciclo do sonho era controlado pela substância química acetilcolina, produzida em parte "desimportante" do tronco encefálico. O sono REM acontecia automaticamente, mais ou menos a cada 90 minutos, e era desencadeado por substâncias químicas e estruturas cerebrais que nada tinham a ver com a emoção e a motivação. Essa descoberta queria dizer que os sonhos provavelmente não tinham nenhum significado; eram simplesmente histórias concatenadas pelo cérebro para tentar refletir a atividade cortical aleatória provocada pelos acontecimentos do dia.

Estudos mais recentes vêm mostrando que o sono REM e o sonho são estados dissociáveis, controlados por mecanismos distintos, embora interajam. O sonho é produzido por uma rede de estruturas reunidas nos circuitos instintivo-motivacionais do cérebro anterior. Essa revelação deu origem a uma miríade de teorias sobre os sonhos, sendo que a maior parte delas remete a Freud.


Fibras dos Sonhos
Mais intrigante é a observação feita por mim e por outros cientistas de que os sonhos param totalmente quando determinadas fibras nas profundezas do lobo frontal se rompem - um sintoma que coincide com a redução geral do comportamento motivado. A lesão é a mesma que era deliberadamente produzida na lobotomia pré-frontal, um procedimento cirúrgico obsoleto usado para controlar alucinações. Esse tipo de operação foi substituído na década de 1960 por medicamentos que reduzem a atividade da dopamina nos mesmos sistemas cerebrais. O sistema de busca, portanto, pode ser o produtor básico dos sonhos.

Se a hipótese for confirmada, a teoria de que os sonhos estão ligados à realização dos desejos pode voltar a determinar a agenda do estudo do sono. Mas, mesmo que prevaleçam outras interpretações, todas elas demonstram que a conceituação "psicológica" dos sonhos voltou a ser cientificamente respeitável. Poucos neurocientistas ainda negam - como já fizeram sem medo - que o conteúdo dos sonhos tenha um mecanismo básico emocional.
Nem todos são entusiastas do ressurgimento dos conceitos freudianos na ciência mental. Não é fácil para a geração mais antiga de psicanalistas, por exemplo, aceitar que seus alunos e colegas mais jovens podem e devem sujeitar a sabedoria convencional a um nível totalmente novo de escrutínio biológico. Mas um número animador de cientistas mais velhos, dos dois lados do Atlântico, - comprometidos a pelo menos manter a mente aberta, como demonstram minha menção anterior aos psicanalistas eminentes que fazem parte do conselho da Neuro-Psychoanalysis e as muitas cabeças grisalhas da Sociedade Internacional de Neuropsicanálise.

Para os neurocientistas mais antigos, a resistência ao retorno das idéias psicanalíticas vem de um tempo, no início de suas carreiras, em que o edifício da teoria freudiana era praticamente indestrutível. Eles não reconhecem nem a confirmação parcial de alguns conceitos fundamentais de Freud; exigem sua completa eliminação. Nas palavras de J. Allan Hobson, um renomado psiquiatra especialista em sono da Faculdade de Medicina de Harvard, o recente interesse em Freud é nada menos que uma inútil readaptação de dados modernos a parâmetros teóricos antiquados. Mas, como disse Panksepp em entrevista de 2002 à revista Newsweek, para os neurocientistas que estão entusiasmados com a reconciliação entre neurologia e psicanálise, "não é uma questão de provar se Freud estava certo ou errado, mas de terminar o serviço".

Se esse serviço puder ser concluído - se os "novos parâmetros intelectuais para a psiquiatria" de Kandel forem estabelecidos -, vai virar passado o tempo em que as pessoas com dificuldades emocionais tinham de escolher entre a terapia psicanalítica, que pode estar em desacordo com a medicina moderna e as drogas prescritas pela psicofarmacologia, que desvaloriza a conexão entre as substâncias químicas cerebrais que manipula e as complexas trajetórias de vida que culminam nos problemas emocionais. A psiquiatria do futuro promete oferecer aos pacientes assistência fundamentada na compreensão integrada do que realmente governa o que sentimos e fazemos.
Quaisquer que sejam as terapias que o amanhã nos reserva, os pacientes só podem se beneficiar de um entendimento melhor de como o cérebro funciona. À medida que os neurocientistas modernos se voltam mais uma vez para as questões profundas da psicologia humana que tanto preocuparam Freud, é gratificante perceber que podemos construir sobre os alicerces que ele edificou, em vez de começar do zero. Mesmo que identifiquemos os pontos fracos das teorias de Freud e corrijamos, revisemos e completemos seu trabalho, é maravilhoso ter o privilégio de terminar o serviço.
Mark Solms é professor de neuropsicologia na Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul, e conferencista honorário em neurocirurgia na Real Escola de Medicina e Odontologia de Londres. Também é diretor do Centro Arnold Pfeffer de Neuropsicanálise do Instituto Psicanalítico de Nova York e neuropsicólogo consultor do Centro Anna Freud em Londres. Solms é editor e tradutor da série de quatro volumes The Complete Neuroscientific Works of Sigmund Freud, a ser lançada pela Karnak Books. No Brasil, publicou O que é neuropsicanálise.

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